terça-feira, 6 de outubro de 2020

Costura, minha menina


Costura, minha menina

” Avó, o que posso fazer quando estou desesperada?”

” Costura, minha menina. À mão, devagar. Aproveitando cada onda criada com seus próprios dedos.”

” Costurar afasta o desespero?”

” Não. Costurando, bordando você o decora. Olha para a cara dele. Enfrenta-o. Da-lhe forma. Atravessa-o . E vai além.”

” Realmente é tão poderoso costurar à mão?”

” Claro, querida. As pessoas já não costuram e por isso estão desesperadas. As costureiras sabem que com agulha e linha você pode enfrentar qualquer situação escura conseguindo criar obras-primas maravilhosas. Enquanto você move suas mãos é como se você movesse sua alma de forma criativa. Se você se deixar transportar pelo ritmo repetitivo do remendo e do bordado, você entra em um verdadeiro estado meditativo. Você consegue chegar a outros mundos. E o emaranhado de fios emocionais dentro de você se suaviza. Sem fazer mais nada.”

” O que você aprende bordando?”

” A enfrentar cada ponto. Só isso. Sem pensar no próximo ponto. A gente se foca no ponto presente, em cada costura. É esse ponto que nos escapa na vida diária. Estamos desesperados porque sempre pensamos no futuro. E se pensamos assim o bordado se torna desarmônico, confuso, pouco curado.”

” Sim, mas vó… as preocupações e medos como vencer com a costura?”

” Minha menina. Você não precisa vencer. Precisa acolher os medos, as preocupações. E compreendê-los. Costurando se tece o enredo da vida com suas mãos, é você que cria o vestido adequado para si mesma. Bordando você se conecta àquele fio fino que pertence a toda a humanidade e aos seus mistérios. Costurando você se transforma em uma aranha que tece sua teia contando silenciosamente ao mundo todos os segredos da vida. Entrelaçando os fios, entrelace seus pensamentos, suas emoções. E você se conectará ao divino que está em você e que segura o início do fio.”

Elena Bernabe



segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Caixa de costura


Venho costurando minha vida

com linhas de saudade.

Procuro equilibrar-lhes a cor

para que o resultado final não seja triste.

Por vezes, é o cinza que insiste;

por vezes, impera o marrom.

Ainda bem que tem saudade bonita;

mudo o tom, amarro fitas,

busco a outra ponta do novelo;

intercalo a trama em amarelo.

 A saudade é assim mesmo,

 tecelã do tempo.

 Quando menos se espera,

 arremata o momento, leva embora,

 deixa a porta encostada, o cadarço de fora,

 e nunca avisa a hora de voltar.

Ainda hei de costurar com verde florescente

 e, se a saudade chegar autoritariamente,

 vai se sentir enfraquecida.

Enquanto procuro a cor,

 vou costurando a vida,

 sem saber qual vai ser o resultado.

Caso ele não fique combinado,

dou um nó, encosto agulha, guardo a linha,

que essa culpa roxa não é minha.

É uma artimanha branca do passado.


Flora Figueiredo


domingo, 4 de outubro de 2020

A meus filhos



Estou aqui ao lado,

à margem de seu caminho,
vendo você passar.


Quero que vá sozinho
mas me mantenho por perto.
Se o rumo é certo,
me aprumo e aplaudo;


se é via tortuosa,
jogo-lhe aos pés uma rosa
pra que desviando dela
você chegue a outro lugar;


se a sombra é fria,
mando-lhe um beijo quente;


se o chão queima do sol nascente,
estendo-lhe a poesia
para que o possa atenuar,


se não houver alimento,
peço ao vento
sementes que lhe tragam vida.


Para a sede,
roubo do céu a lágrima caída da madrugada.


Mas se você não precisar de nada,
ainda assim eu estarei vigiando,
escondida talvez atrás de um querubim.
Abençoarei sua vida e sua estrada,
mesmo que já esteja transformada
na forma clara e casta de um jasmim.


Flora Figueiredo, Florescência



sábado, 3 de outubro de 2020

FORÇA

 


FORÇA

Desmancha o nó,
tira a ferrugem.
espana o pó.
Empurra o pesado,
cola o quebrado,
cerze o rompido,
coça a coceira,
gruda o trincado,
pensa o ardido
e faz brincadeira do verso chorado,
que a vida é rendeira
de sedas ou trapos,
de rendas, farrapos
ou fios de algodão;
que a fibra é comprida e o mundo, artesão.

terça-feira, 5 de março de 2019

O teu riso



Tira-me o pão, se quiseres,
tira-me o ar, mas não
me tires o teu riso.

Não me tires a rosa,
a lança que desfolhas,
a água que de súbito
brota da tua alegria,
a repentina onda
de prata que em ti nasce.

Pablo Neruda

segunda-feira, 4 de março de 2019

Mas eu sou...


O tempo é a substância de que sou feito. 
O tempo é um rio que me arrasta, mas eu sou o rio;
é um tigre que me destroça, mas eu sou o tigre;
é um fogo que me consome, mas eu sou o fogo” 



Jorge Luís Borges
 in Obras Completas

domingo, 17 de fevereiro de 2019

Sonho. Não Sei quem Sou

 
Sonho. Não sei quem sou neste momento.
Durmo sentindo-me. Na hora calma
Meu pensamento esquece o pensamento,
             Minha alma não tem alma.

Se existo é um erro eu o saber. Se acordo
Parece que erro. Sinto que não sei.
Nada quero nem tenho nem recordo.
             Não tenho ser nem lei.



Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"

quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

Sim, tudo é certo logo que o não seja



Sim, tudo é certo logo que o não seja,
Amar, teimar, verificar, descrer
Quem me dera um sossego à beira-ser
Como o que à beira-mar o olhar deseja.


20-1-1929
Poesias Inéditas (1919-1930). Fernando Pessoa.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

Sossega, coração! Não desesperes!



Sossega, coração! Não desesperes!
Talvez um dia, para além dos dias,
Encontres o que queres porque o queres.
Então, livre de falsas nostalgias,
Atingirás a perfeição de seres.
Mas pobre sonho o que só quer não tê-lo!
Pobre esperança a de existir somente!
Como quem passa a mão pelo cabelo
E em si mesmo se sente diferente,
Como faz mal ao sonho o concebê-lo!
Sossega, coração, contudo! Dorme!
O sossego não quer razão nem causa.
Quer só a noite plácida e enorme,
A grande, universal, solene pausa
Antes que tudo em tudo se transforme.
2-8-1933
Novas Poesias Inéditas. Fernando Pessoa.

sexta-feira, 13 de abril de 2018

Eu te amo


Ah, se já perdemos a noção da hora
Se juntos já jogamos tudo fora
me conta agora como hei de partir

Se, ao te conhecer, dei pra sonhar, fiz tantos desvarios
Rompi com o mundo, queimei meus navios
Me diz pra onde é que inda posso ir

Se nós, nas travessuras das noites eternas
Já confundimos tanto as nossas pernas
Diz com que pernas eu devo seguir

Se entornaste a nossa sorte pelo chão
Se na bagunça do teu coração
Meu sangue errou de veia e se perdeu

Como, se na desordem do armário embutido
Meu paletó enlaça o teu vestido
E o meu sapato inda pisa no teu

Como, se nos amamos feito dois pagãos
Teus seios inda estão nas minhas mãos
Me explica com que cara eu vou sair

Não, acho que estás se fazendo de tonta
Te dei meus olhos pra tomares conta
Agora conta como hei de partir

(Chico Buarque de Holanda)

quinta-feira, 12 de abril de 2018

Traduzir-se



Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?


(Ferreira Gullar)

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

É PRIMAVERA


É isto. É Primavera
Estou feliz, em febre
outros politizam suas dores
Eu me polenizo
ou polemizo
- com as flores


(Affonso Romano)


terça-feira, 21 de novembro de 2017

Mulher plena


Quando você vir uma mulher caminhando feliz, 
com a pele boa, sorridente, leve, plena. 
Pode ter certeza: ela não está apaixonada.


(Tati Bernardi) 

quinta-feira, 10 de agosto de 2017

O tempo


Quem tem olhos pra ver o tempo
Soprando sulcos na pele
Soprando sulcos na pele
Soprando sulcos?
O tempo andou riscando meu rosto
Com uma navalha fina
Sem raiva nem rancor.
O tempo riscou meu rosto com calma
Eu parei de lutar contra o tempo
ando exercendo instantes
acho que ganhei presença.
Acho que a vida anda passando a mão em mim.
A vida anda passando a mão em mim.
Acho que a vida anda passando.
A vida anda passando.
Acho que a vida anda.
A vida anda em mim.
Acho que há vida em mim.
A vida em mim anda passando.
Acho que a vida anda passando a mão em mim.
E por falar em sexo
Quem anda me comendo é o tempo
Na verdade faz tempo
Mas eu escondia
Porque ele me pegava à força
E por trás.
Um dia resolvi encará-lo de frente
E disse: Tempo,
Se você tem que me comer
Que seja com o meu consentimento
E me olhando nos olhos
Acho que ganhei o tempo
De lá pra cá
Ele tem sido bom comigo
Dizem que ando até remoçando.

(Viviane Mosé)

sábado, 8 de julho de 2017

Benditos sejam os instantes e os milímetros






Benditos sejam os instantes, e os milímetros, e as sombras das pequenas coisas, ainda mais humildes do que elas! Os instantes (...) Os milímetros - que impressão de assombro e ousadia que a sua existência lado a lado e muito aproximada numa fita métrica me causa.
As vezes sofro e gozo com estas coisas. Tenho um orgulho tosco nisso.



Bernardo Soares
(heterônimo de Fernando Pessoa)

sexta-feira, 7 de julho de 2017

Flores e sonhos



Em um vaso;
cabem flores, cabem cores;
cabe um tanto de jardim.
Cabe um  que de primavera,
porção de terra da Terra;
Cabe uma dose de sonho,
cabe um quinhão de mim.

sexta-feira, 28 de abril de 2017

Que lindo dia o que vemos!



Que lindo dia o que vemos!
Mas, como estes tempos vão,
É bom que não confiemos...
É melhor dizer que temos,
Não um dia de verão,
Mas um dia de veremos."
Fernando Pessoa

domingo, 23 de abril de 2017

Gostaria de encontrar-te.

 
Gostaria de encontrar-te.
Falar das cousas
que já estão perdidas.
Tuas mãos trementes
se desmanchariam
na sonoridade
dos meus ditos.
Faria de teus olhos
luz,
de tua boca
um eco.
Nos teus ouvidos
eu falaria de amigos.
Quem sabe se amarias escutar-me.
 
 
Hilda Hilst

domingo, 22 de janeiro de 2017

Bainha aberta



Crava em meu corpo essa espada crua.
Quero o ardor e o êxtase da luta
em que me rendo voluntária e nua.
Meu temor é a paz pós-união:
desenlace derrota solidão


Astrid Cabral

sábado, 21 de janeiro de 2017

Viver corpos de outros

 
Viver corpos de outros
abrir-me em espreguiçar de ostras
ser solta
decifrar diálogos de golfinhos
prender calcinhas em pontas de estrelas
me virar pelo avesso
ser o reverso do poema
e assimalcançar você...
meu desejo, meu todo prazer!


Rosemary Barreto

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Cor-respondência



Remeta-me os dedos
em vez de cartas de amor
que nunca escreves
que nunca recebo. 
Passeiam em mim estas tardes
que parecem repetir
o amor bem feito
que você tinha mania de fazer comigo.
Não sei amigo
se era o seu jeito
ou de propósito
mas era bom, sempre bom
e assanhava as tardes.
Refaça o verso
que mantinha sempre tesa
a minha rima
firme 
confirme
o ardor dessas jorradas
de versos que nos bolinaram os dois
a dois.
Pense em mim
e me visite no correio
de pombos onde a gente se confunde
Repito:
Se meta na minha vida
outra vez meta
Remeta. 


Elisa Lucinda

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Lambido




Eu quase havia esquecido como é bom
Ser lambido, beijado, lambuzado
Por uma mulher bonita, manhosa, gostosa
Morena, loira, oriental, negra, ruiva
Não importa
Bastou me deixar levar
Sentir a língua molhada deslizar
Em torno das orelhas, ao redor do pescoço
De cima até embaixo da nuca
Arrepiar-me com o quente/frio da respiração
Lenta...
Pausada...
Um interminável gemido de prazer
Perdido nas entranhas do meu ser



Ricardo Icassatti Hermano

quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Sob o chuveiro amar



Sob o chuveiro amar, sabão e beijos, 
ou na banheira amar, de água vestidos, 
amor escorregante, foge, prende-se, 
torna a fugir, água nos olhos, bocas, 
dança, navegação, mergulho, chuva, 
essa espuma nos ventres, a brancura 
triangular do sexo -- é água, esperma, 
é amor se esvaindo, ou nos tornamos fontes? 



Carlos Drummond Andrade




segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Portas entreabertas




Não deixe portas entreabertas
Escancare-as ou as bata de uma vez.
Porque por meias entradas
entram meias felicidades.



Flora Figueiredo

domingo, 13 de novembro de 2016

Peraltagens



Você vai encher os vazios com as suas peraltagens.
E algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos.



Manoel de Barros

sábado, 12 de novembro de 2016

Viver sem explicações





Aprendi a viver sem explicações.
Ficamos com medo do que não podemos explicar
 e perdi esse medo.
Não é preciso explicar ou prever tudo.
Vivo bem nessa ignorância.



Mia Couto

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

O corpo





O corpo não é uma máquina como nos diz a ciência.
Nem uma culpa como nos faz crer a religião.
O corpo é uma festa.




Eduardo Galeano

domingo, 11 de setembro de 2016

Desejo de Abraço



Desejo de abraço
nunca passa.
Abraço é o nó mais delicado que há.
Um braço aqui e outro lá
e o coração se derrete,
o corpo afunda na mais
gigantesca felicidade.




Roseana Murray
in Poço dos Desejos, Ed. Moderna

terça-feira, 30 de agosto de 2016

Querem uma Luz Melhor que a do Sol!







AH! QUEREM uma luz melhor que a do Sol! 
Querem prados mais verdes do que estes! 
Querem flores mais belas do que estas que vejo! 

A mim este Sol, estes prados, estas flores contentam-me. 

Mas, se acaso me descontentam, 

O que quero é um sol mais sol que o Sol, 
O que quero é prados mais prados que estes prados, 
O que quero é flores mais flores que estas flores - 

Tudo mais ideal do que é do mesmo modo e da mesma maneira! 







Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos" 

Heterónimo de Fernando Pessoa 

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

A liberdade




A liberdade é um vinho de excelência.
Não faz sentido que não o compartilhes.
A sedução de ambos ajuda-nos a viver,
é o perfume da pele, a pele do vento, 
o segredo com que a flor atrai a abelha.
As árvores amam-se, e até mesmo as pedras
partilham o amor entre si.
O verde perde-se de amor pelo azul.



Joaquim Pessoa
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