sexta-feira, 29 de julho de 2016

Erro





 
Erro é teu. Amei-te um dia
Com esse amor passageiro
Que nasce na fantasia
E não chega ao coração;
 
Nem foi amor, foi apenas
Uma ligeira impressão;
 
Um querer indiferente,
Em tua presença vivo,
Nulo se estavas ausente.
 
E se ora me vês esquivo,
Se, como outrora, não vês
Meus incensos de poeta
Ir eu queimar a teus pés,
É que, — como obra de um dia,
Passou-me essa fantasia.
  

Machado de Assis, in 'Crisálidas'

quinta-feira, 28 de julho de 2016

Ecce Homo




Sim, sei de onde venho!
Insatisfeito com a labareda
Ardo para me consumir.
Aquilo em que toco torna-se luz,
Carvão aquilo que abandono:
Sou certamente labareda.


Friedrich Nietzsche, in "A Gaia Ciência"

quarta-feira, 27 de julho de 2016

GAIA CIÊNCIA



 


Gosto de me iludir
pensando
que hoje amo
melhor que ontem amei.

 
Assim desculpo o jovem afoito
que, em mim, me antecedeu
e, generoso, encho de esperanças
o velho sábio
que amará melhor que eu.
 
 
 
Affonso Romano de Sant'Anna,

sábado, 16 de julho de 2016

Soneto de separação





 
De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto
De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento

E do momento imóvel fez-se o drama.
De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.
 
Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.


Vinícius de Moraes

sexta-feira, 15 de julho de 2016

Tira teima







Tire a faca do peito
e o medo dos olhos
Ponha uns óculos escuros
e saia por aí. Dando bandeira

Tire o nó da garganta
que a palavra corre fácil
sem desculpas nem contornos
Direta: do diafragma ao céu da boca

Tire o trinco da porta
liberte a corrente de ar
Deixe os bons ventos levantarem a poeira
levando o cisco ao olho grande

Tire a sorte na esquina
na primeira cigana ou no velho realejo
Leia o horóscopo e olhe o céu
lembre-se das estrelas e da estrada
Tire o corpo da reta
e o cu da seringa
que malandro é você, rapaz
o lado bom da faca é o cabo

Tire a mulher mais bonita
pra dançar e dance
Dance olhando dentro dos olhos
até que ela morra de vergonha

Tire o revólver e atire
a primeira pedra
a última palavra
a praga e a sorte
a peste, ou o vírus?



Bernardo Vilhena

quinta-feira, 14 de julho de 2016

Soneto da Fidelidade






De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.




Vinícius de Moraes

quarta-feira, 13 de julho de 2016

Rápido e rasteiro






vai ter uma festa
que eu vou dançar
até o sapato pedir pra parar.
aí eu paro, tiro o sapato
e danço o resto da vida


Chacal
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