quinta-feira, 30 de junho de 2016

Um Beijo



Foste o beijo melhor da minha vida,
 ou talvez o pior...Glória e tormento,
 contigo à luz subi do firmamento,
 contigo fui pela infernal descida!
 Morreste, e o meu desejo não te olvida:
 queimas-me o sangue, enches-me o pensamento,
 e do teu gosto amargo me alimento,
 e rolo-te na boca malferida.
 Beijo extremo, meu prêmio e meu castigo,
 batismo e extrema-unção, naquele instante
 por que, feliz, eu não morri contigo?
 Sinto-me o ardor, e o crepitar te escuto,
 beijo divino! e anseio delirante,
 na perpétua saudade de um minuto....
 
Olavo Bilac, in "Poesias"


quarta-feira, 29 de junho de 2016

Aqui


Aqui, deposta enfim a minha imagem,
 Tudo o que é jogo e tudo o que é passagem,
 No interior das coisas canto nua.

 
 Aqui livre sou eu — eco da lua
 E dos jardins, os gestos recebidos
 E o tumulto dos gestos pressentidos,
 Aqui sou eu em tudo quanto amei.

 
 Não por aquilo que só atravessei,
 Não pelo meu rumor que só perdi,
 Não pelos incertos actos que vivi,

 
 Mas por tudo de quanto ressoei
 E em cujo amor de amor me eternizei.
 
 
Sophia de Mello Breyner Andresen, in 'Dia do Mar'


terça-feira, 28 de junho de 2016

Anseios



Só quero lembrar
se o tempo for todo meu.

Só anseio lembrança
se não houver passado.

Bruma e espuma,
apagam o tempo em que não amei.

E eu amei
para ser tudo, todos, sempre.
 
Para te visitar
esquecerei a terra
e apagarei as estrelas.
 
E irei pelos teus olhos,
até o mundo voltar a ter princípio.
 
Sou eu, dirás,
E o tempo será lembrado.
 
 
Mia Couto


segunda-feira, 27 de junho de 2016

Erro poético


Sou o açúcar
procurando a formiga.
Meu carreiro
não tem linha.
É um ponto, um planetário grão.
A minha natureza
é uma inacabada caligrafia:
apenas os erros me defendem.
O amor apenas
me rasura a alma.
Com a formiga
partilho alucinogénicos:
migas de paixão, migalhas de doçura.
 
 
 
Mia Couto


domingo, 26 de junho de 2016

pernoitas em mim


pernoitas em mim 
e se por acaso te toco a memória... amas 
ou finges morrer 

pressinto o aroma luminoso dos fogos 
escuto o rumor da terra molhada 
a fala queimada das estrelas 

é noite ainda 
o corpo ausente instala-se vagarosamente 
envelheço com a nómada solidão das aves 

já não possuo a brancura oculta das palavras 
e nenhum lume irrompe para beberes 

 
 
Al Berto.

(Alberto Raposo Pidwell Tavares, poeta, pintor, editor e animador cultural português)

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