"A vida ri-se das probabilidades e põe palavras onde imaginamos silêncios e súbitos regressos quando pensávamos que não nos voltaríamos a encontrar..."
José Saramago.
Atenção! Compro gavetas, compro armários, cômodas e baús.
Preciso guardar minha infância, os jogos de amarelinha, os segredos que me contaram lá no fundo do quintal.
Preciso guardar minhas lembranças, as viagens que não fiz, ciranda,
cirandinha e o gosto de aventura que havia nas manhãs.
Preciso guardar meus talismãs, o anel que tu me destes o amor que tu me tinhas e as histórias que eu vivi.
Navego-me eu–mulher e não temo,
sei da falsa maciez das águas
e quando o receio
me busca, não temo o medo,
sei que posso me deslizar
nas pedras e me sair ilesa,
com o corpo marcado pelo olor
da lama.
Abraso-me eu-mulher e não temo,
sei do inebriante calor da queima
e quando o temor
me visita, não temo o receio,
sei que posso me lançar ao fogo
e da fogueira me sair inunda,
com o corpo ameigado pelo odor
da chama.
Deserto-me eu-mulher e não temo,
sei do cativante vazio da miragem,
e quando o pavor
em mim aloja, não temo o medo,
sei que posso me fundir ao só,
e em solo ressurgir inteira
com o corpo banhado pelo suor
da faina.
Vivifico-me eu-mulher e teimo,
na vital carícia de meu cio,
na cálida coragem de meu corpo,
no infindo laço da vida,
que jaz em mim
e renasce flor fecunda.
Vivifico-me eu-mulher.
Fêmea. Fênix. Eu fecundo.
Quando eu mordera palavra,por favor,não me apressem,quero mascar,rasgar entre os dentes,a pele, os ossos, o tutanodo verbo,para assim versejaro âmago das coisas.
Quando meu olharse perder no nada,por favor,não me despertem,quero reter,no adentro da íris,a menor sombra,do ínfimo movimento.
Quando meus pésabrandarem na marcha,por favor,não me forcem.Caminhar para quê?Deixem-me quedar,deixem-me quieta,na aparente inércia.Nem todo viandanteanda estradas,há mundos submersos,que só o silêncioda poesia penetra.
A felicidade precisa do inútil. A felicidade é apenas o necessário. Tempere-a com muitos supérfluos. (…) Aceito o bucólico e também a arte em mármore e ouro. A felicidade sozinha é como o pão seco. Come-se, mas não é um jantar. Quero o supérfluo, o inútil, o extravagante, o demasiado, o que não serve para nada.
Minh'alma, de sonhar-te, anda perdida.
Meus olhos andam cegos de te ver.
Não és sequer razão do meu viver
Pois que tu és já toda a minha vida!
Não vejo nada assim enlouquecida...
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No mist'rioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!...
"Tudo no mundo é frágil, tudo passa...
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!
E, olhos postos em ti, digo de rastros:
"Ah! podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: princípio e fim!..."
Não digas nada!
Nem mesmo a verdade
Há tanta suavidade em nada se dizer
E tudo se entender —
Tudo metade
De sentir e de ver...
Não digas nada
Deixa esquecer
Talvez que amanhã
Em outra paisagem
Digas que foi vã
Toda essa viagem
Até onde quis
Ser quem me agrada...
Mas ali fui feliz
Não digas nada.
Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"
Tenho tanto sentimento
Que é frequente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.
Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.
Qual porém é a verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar.
Dorme sobre o meu seio,
Sonhando de sonhar...
No teu olhar eu leio
Um lúbrico vagar.
Dorme no sonho de existir
E na ilusão de amar.
Tudo é nada, e tudo
Um sonho finge ser.
O ‘spaço negro é mudo.
Dorme, e, ao adormecer,
Saibas do coração sorrir
Sorrisos de esquecer.
Dorme sobre o meu seio,
Sem mágoa nem amor...
No teu olhar eu leio
O íntimo torpor
De quem conhece o nada-ser
De vida e gozo e dor.
Frémito do meu corpo a procurar-te,
Febre das minhas mãos na tua pele
Que cheira a âmbar, a baunilha e a mel,
Doído anseio dos meus braços a abraçar-te,
Olhos buscando os teus por toda a parte,
Sede de beijos, amargor de fel,
Estonteante fome, áspera e cruel,
Que nada existe que a mitigue e a farte!
E vejo-te tão longe! Sinto tua alma
Junto da minha, uma lagoa calma,
A dizer-me, a cantar que não me amas...
E o meu coração que tu não sentes,
Vai boiando ao acaso das correntes,
Esquife negro sobre um mar de chamas...
Manto de seda azul, o céu reflete
Quanta alegria na minha alma vai!
Tenho os meus lábios úmidos: tomai
A flor e o mel que a vida nos promete!
Sinfonia de luz meu corpo não repete
O ritmo e a cor dum mesmo desejo... olhai!
Iguala o sol que sempre às ondas cai,
Sem que a visão dos poentes se complete!
Meus pequeninos seios cor-de-rosa,
Se os roça ou prende a tua mão nervosa,
Têm a firmeza elástica dos gamos...
Para os teus beijos, sensual, flori!
E amendoeira em flor, só ofereço os ramos,
Só me exalto e sou linda para ti!
Eu era a desdenhosa, a indif'rente.
Nunca sentira em mim o coração
Bater em violências de paixão
Como bate no peito à outra gente.
Agora, olhas-me tu altivamente,
Sem sombra de Desejo ou de emoção,
Enquanto a asa loira da ilusão
Dentro em mim se desdobra a um sol nascente.
Minh'alma, a pedra, transformou-se em fonte;
Como nascida em carinhoso monte
Toda ela é riso, e é frescura, e graça!
Nela refresca a boca um só instante...
Que importa?... Se o cansado viandante
Bebe em todas as fontes... quando passa?...
No divino impudor da mocidade,
Nesse êxtase pagão que vence a sorte,
Num frêmito vibrante de ansiedade,
Dou-te o meu corpo prometido à morte!
A sombra entre a mentira e a verdade...
A nuvem que arrastou o vento norte...
- Meu corpo! Trago nele um vinho forte:
Meus beijos de volúpia e de maldade!
Trago dálias vermelhas no regaço...
São os dedos do sol quando te abraço,
Cravados no teu peito como lanças!
E do meu corpo os leves arabescos
Vão-te envolvendo em círculos dantescos
Felinamente, em voluptuosas danças...
Quem se dá quem se recusa
Quem procura quem alcança Quem defende quem acusa Quem se gasta quem descansa Quem faz nós quem os desata Quem morre quem ressuscita Quem dá a vida quem mata Quem duvida e acredita Quem afirma quem desdiz Quem se arrepende quem não Quem é feliz infeliz Quem é quem é coração
© JOSÉ SARAMAGO
In Os Poemas Possíveis, 1966 |
Sobre o leito desmanchado te derrubo, Onde atiças o desejo que acendi. À glória do teu corpo, de mim, subo: Não cantam anjos, mas do céu bem perto, De um suor de agonia recoberto, Tudo se cumpre na aspa que escolhi.
© JOSé SARAMAGO
In Os Poemas Possíveis, 1966 |
Há duas tragédias na vida: uma a de não satisfazermos os nossos desejos, a outra a de os satisfazermos.
A diferença entre o doido e o não-doido é que o não doido não diz e nem faz as coisas que pensa.
Sou bem diferente, sou, das outras mulheres todas. Eu quero antes os meus defeitos que as virtudes de todas as outras.
Eu quero amar, amar perdidamente!Amar só por amar: Aqui... além...Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...Amar! Amar! E não amar ninguém!Recordar? Esquecer? Indiferente!...Prender ou desprender? É mal? É bem?Quem disser que se pode amar alguémDurante a vida inteira é porque mente!Há uma Primavera em cada vida:É preciso cantá-la assim florida,Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!E se um dia hei de ser pó, cinza e nadaQue seja a minha noite uma alvorada,Que me saiba perder... pra me encontrar...